terça-feira, 22 de outubro de 2013

Suspender a «dívida pública» e recomeçar a viver (depoimento de Raquel Varela)

Suspender a «dívida pública» e recomeçar a viver

Dizem-nos que o Estado precisa de emitir dívida para se financiar. Não é verdade. A questão não é saber se o Estado precisa de emitir dívida para se financiar, a questão é outra: em benefício de quem é que o Estado precisa de emitir dívida? Já provámos, num estudo que até hoje ninguém contrariou, que o Estado não precisa de emitir dívida para financiar as funções sociais. Então, por que é que a emite? Aceitando a divisão feita pelo próprio Eurostat, o Estado precisa de emitir dívida para financiar os ganhos do Capital (lucro, juro e renda) e estes estão todos contabilizados, como bem sabemos, em parcerias público-privadas, em subcontratações de serviços externos, na própria dívida, na recapitalização de bancos falidos, etc., etc. É o parasitismo do Orçamento bem à vista de todos: gente que coloca os seus capitais em títulos de dívida que rendem juros garantidos, parcerias que rendem sem risco, empresas que sorvem gigantescas massas de subsídios na forma de isenções fiscais, etc.

Estou entre aqueles que acreditam que só a partir da suspensão do pagamento da dívida se podem criar as condições necessárias para uma disrupção social, para uma profunda instabilidade política, que talvez seja a única forma de reverter a agonia em que entrou quem vive do seu salário, ou seja, para impedir a governabilidade dos que nos conduziram até aqui.

Quem desconhece que, no presente contexto político, “estabilidade política” é um eufemismo para desemprego e precaridade? Quem desconhece que “requalificação” quer dizer desemprego, “mobilidade” quer dizer despedimentos, “equidade” quer dizer roubo das pensões, e “dívida” quer dizer renda fixa de capital?

Suspender o pagamento da dívida significa garantir alguns certificados de aforro, garantir os depósitos para a média dos depositantes, e garantir a parte que cabe à segurança social: tudo o resto deve ter o seu pagamento suspenso, unilateralmente. Que pague a dívida quem a contraiu, quem dela beneficiou! Contudo, estes, aflitos perante a hipótese de perder a sua galinha dos ovos de ouro — esse juro constante sem fazer nada, sem trabalhar ou produzir —, irão tentar retirar o "seu" capital do território da produção nacional; por isso, a suspensão da dívida tem que ser acompanhada e conjugada com a nacionalização da banca e do sector financeiro, essenciais para o investimento na produção de riqueza social.

Este cenário de possibilidade talvez pareça bizarro, mas só parecerá extravagante e improvável para aqueles que registariam como a czarina russa, no seu diário, em 1917, os “deliciosos banho de mar”, as caçadas e o sabor do chá, quando, em São Petersburgo, a revolução já estava em marcha; para aqueles que, em véspera do Maio de 68, diriam com o editorial do jornal francês Le Monde: «a França aborrece-se!»; ou para aqueles que acompanhariam as palavras do ministro do Exército de Marcelo Caetano, Andrade Silva, que às 3 e pouco da madrugada de 25 de Abril dizia ao Ministro da Defesa, Silva Cunha: «peço-lhe que não se preocupe, pois está tudo sossegado e não há qualquer problema em qualquer ponto do País».

Este Sábado participarei na manifestação convocada pelo Movimento Que se Lixe a Troika. Participarei em todos os protestos até que este país deixe de se «aborrecer», até que possamos recuperar as nossas vidas de volta.
Raquel Varela