terça-feira, 4 de setembro de 2012

Não Temos Nada para nos Arrepender, a não Ser Termos Sido Complacentes com a nossa Própria Condenação

os dias que correm, correm mal para a maioria das pessoas e por isso é preciso fazer qualquer coisa de extraordinário e com carácter de urgência. correm mal porque nem o verão soube a verão quando o desemprego atinge 15% da população. falar de férias é mesmo um tema sem sentido para muitos. e porque também para outros falar de férias é lembrar expropriação de subsídios à margem dos acordos contrat
uais e da constituição. correm mal porque diariamente as notícias são verdadeiros arautos de uma guerra sem tréguas onde as pessoas parecem ser apenas baixas necessárias para mercados desgovernados e governos autistas. correm pior ainda os dias porque, entre privatizações selvagens e negociatas mafiosas, na foto final ficam sempre os mesmos rostos alinhados num sorriso cínico de tanta impunidade. e pior não poderiam ser estes dias porque são igualmente maus e sombrios por onde quer que o olhar se alinhe, tornando o planeta num lugar sem brilho, sem vida, sem sentido. acresce que piores ficam os dias porque já nem a arte e a cultura os pode iluminar, cansadas, encaixotadas e amarradas que estão as mãos e o engenho que as podiam animar. e de mal em mal, nem aos corpos é permitida a dor e o cansaço porque já não restam lugares - que foram nossos, que são, na verdade, nossos - onde os corpos se tratem, repousem, redimam. estes dias que correm, correm de facto mal para a maioria, tão mal que nem parece possível evitar que corram tão mal. que nem parece plausível que possam correr pior. mas sabemos que tudo pode ainda correr pior. e é por isso que é preciso fazer algo de extraordinário. algo que tem de ser feito porque não é possível estar mais tempo neste inferno de cadáveres adiados. e algo de extraordinário passa por conseguirmos sair das nossas feridas temporárias, das nossas rixas domésticas, das nossas fraturas vicinais e acertarmos o passo na caminhada que se impõe fazer sem demora. urgente é a vida. e urgente são as coisas extraordinárias quando os dias correm mal. e essa urgência não é a de voltarmos atrás, sob a ilusão de que antes estavamos bem, mas antes a de avançarmos para uma outra coisa. essa coisa extraordinária que é a repartição justa da riqueza, a partilha do comum, a garantia da igualdade e da equidade e garantia da liberdade. por isso me junto aos que sentem que é preciso dar um sinal firme, um sinal de indignação, um sinal de criação de dias diferentes. que se lixe a Troika (e os governos a seu mando). estes são apenas o carrasco desse abismo que se chama capitalismo selvagem e que se acoitou numa democracia corrupta e fragilizada…é preciso sobressaltá-la, agitá-la e trazê-la à superfície. em todos os lugares porque é de todos os lugares esta podridão instalada. é urgente tomar conta dos dias, que são afinal nossos, sempre foram, apenas nos temos esquecido disso embalados pelo canto da sereia que são os mercados, os ratings, os memorandos, as medidas expecionais, as golpadas palacianas. e portanto, é preciso fazê-lo aqui, em Lisboa, mas também ali no país, e acolá pela Europa, e lá longe, em todo o planeta. é preciso fazer coisas extraordinárias globalmente. porque é preciso interromper este tempo de coisa nenhuma, suspender o malefício destes dias sombrios, abortar esta avalanche de futuro anulado que a austeridade de políticos e a ganância de banqueiros e especuladores nos trouxe para última refeição. sentença macabra sustentada numa crise bem modelada por mãos sinistras e hábeis de responsáveis escondidos em gabinetes por entre dolares, euros, guerras e petróleos, defendidos por cacetetes e leis que só a eles obedecem, que só a eles interessam. Mas quem é que foi aqui condenado?! Não cometemos crime algum! Não temos nada para nos arrepender, a não ser termos sido complacentes com a nossa própria condenação. E por isso, dia 15 de Setembro estarei nas ruas para fazer coisas extraordinárias com todos aqueles que desejam que os dias sejam diferentes. Extraordinariamente diferentes.

PAULO RAPOSO, antropólogo, professor universitário e activista.